terça-feira, 15 de maio de 2012

Desafios e conquistas na construção do vínculo afetivo entre pais e filhos adotivos

* Por Maria Salete Abrão
A pessoa que passa a fazer parte de uma história de adoção carrega no imaginário uma bagagem sobre o tema que está ligada intimamente aos conceitos e preconceitos do grupo social do qual faz parte.Desde sempre, adoção é um processo histórico e cultural. Está, portanto, associada ao momento e ao grupo social em que acontece. Estão disseminados pela sociedade contemporânea conceitos diversossobre o que é adotar e ser adotado; ser mãe e pai adotivo; ser filho adotivo. Para compreender a face mais verdadeira e profunda é importante analisar o que revelam e o que ocultam as narrativassobre o tema – inclusive a partir de uma perspectiva histórica e psicológica. No Brasil, a ampliação da reflexão e da pesquisa sobre a adoção contribui para que o processo de adotar uma criança sejacercado de informações e cuidados mais eficientes. Profissionais da área jurídica, psicológica, médica e sociológica, entre outras, têm estudado e pesquisado o tema nos últimos anos. As recentesalterações na lei nacional da adoção são reflexo desses estudos e pesquisas. Mas, ainda é necessário muito trabalho para que a adoção se torne cada vez mais um processo com um potencial e prognósticopositivo.
Compreender quais peculiaridades a situação de adoção traz para a constituição da subjetividade pode subsidiar intervenções que visem ampliar as perspectivas de saúde nos referidos processos. Aadoção hoje em nosso país, em termos socioculturais, é um dos dispositivos que tenta dar conta de um sintoma social – o alto contingente de crianças que por motivos diversos, em grande partebasicamente relacionados com a falta de estrutura ocasionada por fatores socioeconômicos, não pode ser criada por sua família biológica. Essa é uma das pontas do processo de filiação adotiva. Dooutro lado, estão os pais candidatos à adoção – grande parte é motivada por um sintoma que aumenta a incidência na atualidade, a infertilidade. Com esses elementos como ponto de partida, as reflexõessobre o tema devem nos encaminhar para respostas que visem encontrar caminhos a partir dessa realidade – não alternativas idealizadas, que não levam em conta as dificuldades pelas quais esses pais efilhos passaram em sua história de vida.
Um dos desafios principais que está contido em cada situação de adoção diz respeito aos valores culturais, associados à maternidade e à paternidade, que habitam o imaginário. Na nossa cultura estáinscrito no imaginário que a mãe que gera deve ser a mesma mãe que cria. Nas situações de adoção, este elo indissolúvel é rompido. O vínculo simbólico entre pais e filhos adotivos precisa incorporar,portanto, este elemento de difícil superação. Ocorre nas adoções uma passagem, uma mudança de cuidados, mesmo que o adotado seja um recém-nascido. Característica da experiência de adoção, essapeculiaridade não tem um sentido negativo. Implica, no entanto, em um trabalho de elaboração psíquica. Pais e filhos adotivos precisam integrar a experiência vivida e as suas particularidades.
É possível que pais adotivos produzam um outro modelo para o acolhimento e reconhecimento do filho. Para legitimar essa filiação, eles terão que ter condições favoráveis para historiar a chegada dacriança na nova família – ao invés de rememorar. Isso significa estarem livres para criar um outro sistema de referência, com outros parâmetros. Criar possibilidades a partir da impossibilidade. Issoé o disruptivo e o criador. É preciso criar conceitos a partir da diferença, um novo paradigma. Não é tapar buracos de uma teoria falha, mas abrir um furo em um sistema teórico gerando a partir deleuma nova dimensão.
Não é igualar, é diferenciar. Não se corrige a fratura, a ruptura produzida pela transferência de cuidados da mãe biológica para outra mãe; é preciso integrá-la, considerá-la, absorvê-la e,sobretudo, poder falar sobre ela; poder gerar a partir dela. Pais adotivos não são iguais aos pais biológicos. Não são melhores, nem piores, são diferentes. Para que a adoção transcorra bem, oimprescindível é lidar com a diferença.

O filho adotivo precisa ser reconhecido como outro que é originado geneticamente por outros. “Outro” porque viveu os momentos iniciais da vida com ‘outros’. Os sintomas originam-se na falta de espaçoque esses indivíduos tiveram para viver essa dimensão de terem uma origem biológica diferente da de seus pais. Os sintomas são emblemas da impossibilidade de olhar para as diferenças, para o ‘outro’.Se for garantido esse espaço, o adotivo constrói sua história, incluindo a diferença e podendo falar sobre isso. Acredito que a escuta psicanalítica pode facilitar, viabilizar e por vezes promovertranscrições da história para pais e filhos adotivos, permitindo que resgatem elos perdidos e construam novos elos gerando melhores condições de elaboração das vicissitudes de suas histórias devida.
O desafio é criar uma história, recheada de metáforas e metonímias, que propõe a compreensão da relação entre adotantes e adotivo por meio de interpretações simbólicas. A revelação da adoção não é sódescoberta, mas invenção de uma história. Isso marca sua diferença. Esses são alguns dos aspectos que podem auxiliar o processo da adoção do ponto de vista psíquico. Em função dos estudos e pesquisasdispomos hoje de informações de várias áreas do conhecimento que podem facilitar esse processo. É fundamental que a informação possa chegar a pais candidatos à adoção e aos profissionais que atuam deforma direta nas várias frentes que estão relacionadas à adoção.
Adoção: evolução histórica
É comum, por exemplo, que as circunstâncias de entrega do filho estejam associadas – no imaginário de pais e filhos adotivos – ao fenômeno do abandono. O termo “abandono” está geralmente vinculado auma ideia “horrível” para qualquer ser humano. Trata-se da ruptura de um elo indissolúvel no imaginário; a ideia aterrorizante de que a mãe que gerou uma criança não pode, ou não quer, criá-la. Porforça da fragilidade do recém-nascido esta hipótese configura grave ameaça potencial à sobrevivência do indivíduo e, no limite, da própria espécie. A história da civilização ocidental contribuiu paraconstruir e fortalecer os aspectos mais terríveis associados ao termo, que progressivamente passou a se ligar ao fenômeno da miséria e do subdesenvolvimento. Como disse Nelson Rodrigues,“subdesenvolvimento não se improvisa, é uma obra de séculos”.
A noção contemporânea de “abandono” é uma construção de três séculos. O conceito que se tem hoje de abandono está associado aos padrões éticos e morais desenvolvidos especialmente a partir doIluminismo. Hoje, os valores que prevalecem socialmente sobre a infância não são os mesmos do início da civilização Ocidental. A exposição de crianças – e mesmo o infanticídio – eram práticas comunsna antiguidade. O infanticídio, o aborto e o enjeitamento eram usuais e legais. Há, na história, várias evidências de que tais práticas ocorreram em praticamente todas as grandes civilizações. Afamília na antiguidade estava sob a autoridade do pai, que tinha o direito de vida e morte sobre os filhos. Filho e escravo eram propriedades dos pais e nada que se fizesse com “aquilo que é de suapropriedade” era injusto. A história da adoção começa nesse mesmo período, mas se fundamentava em conceitos diferentes. Estava diretamente ligada à transmissão de patrimônio e de títulos. A primeiraregulamentação conhecida sobre a adoção está no código babilônico de Hamurabi e data do segundo milênio antes de Cristo. O texto do código versa sobre a impossibilidade de um filho adotivo serreclamado por quem o deixou.
Essa regulamentação persiste como referência até a Idade Média, quando ocorre uma involução legal e social. A adoção desaparece das legislações, especialmente por iniciativa da Igreja Católica. Odireito canônico deixou de incorporar o instituto da adoção por considerá-lo uma porta aberta ao reconhecimento de filhos originários de relações adúlteras ou incestuosas. A adoção como práticaregulamentada foi então totalmente eliminada do mundo Ocidental.
Roda de expostos
É nesse período – e com esses valores sobre infância e a adoção – que surge, em 1203, em Roma, a primeira “Roda” destinada a receber os bebês deixados pelos pais. O dispositivo permitia que o bebêfosse entregue sem que ninguém visse quem lá o havia deixado. Esses cilindros de madeira giratórios originaram-se nos conventos medievais, onde dispositivos semelhantes eram utilizados para receberos oblatos, crianças doadas por seus pais para o serviço de Deus. Mas, desde essa época, as rodas serviam também para depositar bebês que os pais biológicos não podiam ou não queriam criar. Suaexpectativa era que a criança seria cuidada, batizada e receberia educação. Desde essas primeiras referências é possível perceber a ambiguidade presente na entrega de um filho, ato de “abandono” e“cuidado”. A partir do fim da Idade Média, a adoção de crianças foi objeto de progressiva aceitação e reintrodução na legislação. A adoção volta a fazer parte da legislação na Idade Moderna. Mas,nesse período, era instituído que o adotivo não poderia ser considerado membro da família do adotante. Isso só mudou definitivamente no século passado.
O desenvolvimento de novos sentimentos de caridade e misericórdia vai alterar a forma como é tratada a exposição de crianças. Os termos “expostos” ou “enjeitados” passam a ser usados para criançasque não eram criadas por seus pais biológicos por serem frutos de relações “ilícitas”, pela condição de miséria dos pais ou por ambos os motivos. Com o proliferação da miséria, as noções de caridadee de assistência social começam a se formar para o caso de abandono de crianças. Amplia e se fortalece neste período o sentimento de família. Segundo Philippe Ariés (1981), o sentimento de família,do qual brota o sentimento da infância, só vai emergir com força entre os séculos 16 e 17. A família torna-se então a principal célula social, base dos Estados nacionais e fundamento do podermonárquico. Passa a ser reconhecida como um valor e exaltada com as notas fortes da emoção. O cuidado com as crianças inspira uma nova afetividade que corresponde ao que Ariés chama de “modernosentimento de família”. Os pais passam a ser responsáveis por proporcionar a seus filhos uma preparação para a vida.
Desde sempre, a criança demanda proteção e cuidado. Já na Idade Moderna, com o Iluminismo, surge uma concepção mais científica da infância, que leva em conta noções de higiene, o conhecimento dasdoenças infantis e o aleitamento artificial. Todo esse conjunto de experiências e circunstâncias compõe um novo contexto social de valorização da infância. Nesse momento, a burguesia ganha impulso ese desenvolve. A classe média elabora a construção de uma nova ética que inclui ordem, eficiência e disciplina social, além de uma preocupação essencial com a condição humana. Aflora um movimento decombate à mortalidade infantil. O olhar mais atento para a educação instala-se aos poucos na sociedade e a transforma progressivamente de forma ampla e profunda. A família deixa de ser a instituiçãoque transmite unicamente os bens e o nome. Passa a ter a função de formar os seus membros também nos campos moral e espiritual. A educação preenche a lacuna entre a geração física e a instituiçãojurídica. Tudo isso propicia uma importante mudança. A criança passa a ser vista como um ser que demanda e merece proteção e cuidado. Passa a ser considerada como personagem importante, futurocidadão e colaborador do Estado. É importante, nesse contexto, proteger sua vida e sua saúde.
Soa estranho pensar que isso um dia foi diferente, já que os valores associados à infância parecem que sempre estiveram incrustados na cultura. Trata-se, no entanto, de uma elaboração cultural, de umvalor construído, que hoje está bastante fortalecido. Há na atualidade um amplo sistema de leis de proteção à infância, fruto de uma lenta mas profunda evolução histórica. Mesmo com essas mudanças,os filhos bastardos, resultados de relações ilícitas, são inaceitáveis dentro dos valores vigentes na Idade Moderna. Esse fato, acrescido à miséria, estava no centro da maioria das situações deabandono de crianças. A adoção não era encarada, naquele momento, como solução para essa realidade social. Graças, no entanto, à mudança de valores em relação à família e à infância, a adoção começaa se consolidar cada vez mais em termos legais.
Adoção no Brasil
No Brasil, a escravatura e a miscigenação contribuíram para que a história da infância tivesse peculiaridades mais “trágicas”. Sociedade de senhores e de escravos, a violência no país fazia parte dasinstituições sociais. Era mesmo um instrumento de sua preservação e reprodução. Entre as muitas vítimas dessa violência estavam as crianças, especialmente as filhas de pais brancos e de mães negras.Muitas dessas crianças compuseram boa parte das que eram encaminhadas às Rodas de Enjeitados, cuja existência se manteve no Brasil até 1951 – um século depois de terem sido abandonadas naEuropa.
O abandono de crianças na época colonial raramente ocorria nas áreas rurais. Era em geral um gesto furtivo que ocorria à noite, nas cidades. O abandono era muitas vezes acompanhado de cuidados porparte de quem “abandonava”, que buscava certificar-se de que a criança teria sido bem acolhida. A sociedade fazia vistas grossas ou acobertava o ato, que não gerava processos, nem investigações. Oabandono envolvia questões morais – como a condenação social das mães de filhos ilegítimos – e outras, como a miséria, o nascimento de gêmeos e a orfandade. As mães que davam os filhos eramconsideradas desalmadas, segundo a visão oficial que se tinha à época. Sabe-se que essa visão permanece viva no universo imaginário de muitas pessoas até hoje – uma fantasia relacionada à realidadeaqui descrita. O historiador Renato Venâncio avalia que o abandono podia ser, também, um gesto de ternura, como o das escravas que abandonavam os filhos para assim torná-los libertos. Outro casoenvolve as mães que fraudavam as Misericórdias, deixando os filhos na roda e oferecendo-se mais tarde como criadeiras, já que estas recebiam verba da municipalidade.
À época, a entrega de um filho era associada à miséria, à escravidão ou ao fato de a criança ser fruto de relação ilícita. Os pais que entregavam pertenciam quase sempre a classes sociaisdesfavorecidas – o que fortaleceu no imaginário a hipótese de desvalorização e o surgimento das fantasias hoje conhecidas sobre a “maldade” das mães que entregam filhos. Desde os tempos coloniais, aassistência informal foi o meio mais amplo e difundido de assistência aos expostos. O expediente dos ‘filhos de criação’ foi amplamente valorizado e disseminado no país. Criar um exposto traziainegáveis vantagens econômicas, garantindo mão de obra suplementar e gratuita, ligada a laços de fidelidade, afeição e reconhecimento. As crianças expostas e criadas pelas famílias t

Nenhum comentário:

Postar um comentário